Ele pensava que não podia adiantar. Nada do que fizesse viria a ser o suficiente. Mesmo que tentasse. Mesmo que quisesse.
Era a última semana do ano e pouco havia ainda para tentar. Os cadernos estavam arrumados. As pautas no lugar de sempre. No lugar reservado ao silêncio absurdo do pó. O violoncelo na caixa. Como se nunca tivesse sido tocado. Amado. Abraçado. A caixa a servir de sepulcro à música que o interpretava na própria cabeça vezes e vezes sem conta. A mesma música. A mesma melodia. Vezes intermináveis. Como se fossem conversas sem letras. Sem palavras. Diálogos a uma só voz. Uma só melodia. Com o violoncelo guardado com as cordas de fora. Na caixa.
Era a última semana do ano e as folhas caíam das árvores. Altas. Fora de tempo. Amarelas. Acastanhadas - como se acastanhado pudesse ser uma cor. Secas. As folhas a caírem na suavidade do frio. Do vento. Durante a noite. Ele sabia. Fechava os olhos e ouvia as folhas sobre a música. Umas no chão. Umas sobre as outras. Na música. Na sua cabeça. Sobre o seu tormento. Uma a uma, ele sabia.
Recordava-se dela de cada vez que chegava ao jardim. Pousava os pés no quebrar dessas folhas outrora caídas como se não tivessem tido outro lugar a pousar que não o lugar em que os seus pés tentavam desenhar um caminho possível de continuar. Amarelas. Sentia-lhes o odor. Avançava, na precaução serena de quem reconhece a proximidade da morte, como que a medir o tempo que passava sobre a música que seu corpo entoava e tentava contar as folhas. Todas. Uma a uma. Fazer uma estimativa aproximada de quantas seriam naquele fragmento de espaço quem que se reconhecia como ser demenciado na solidão inóspita de uma manhã de Inverno.
Era a última semana do ano e tinha já quase tudo pronto. Sentia que tinha arrumado o maior lugar da sua vida. Ou o maior espaço da sua vida. Ou talvez, até, o maior tempo da sua vida. Pelo menos o único em que se reconheceu. Em que se soube. Em que sentia o sangue a correr e o respirar a querer manter-se como se pudesse vir a tornar-se ser eternizado na magia da pele dela. Ela. Tinha-a quase toda arrumada na sua vida. Da sua vida. Sob as folhas sob os pés. Acastanhado a poder tornar-se uma cor agora que a viabilidade de tudo estar ano seu lugar se começava a tornar cada vez mais efectiva.
Naquele jardim passara muito tempo do tempo passado naquele tempo em que ter tempo era condição de existir. Com ela. Ali a ouvira cantar o vento. Ali lhe tinha tocado a voz nas cordas com os dedos abertos às feridas que chegavam depois do êxtase. Ali ela haverá dançado no seu corpo qual nota a amar a pauta. O amor a ser lugar possível de existir. Sem palavras. Sem ter que dizer palavras porque as palavras a música e a música o segredo por detrás do silêncio de quem não sabe dizer o tanto que é maior que tudo e que corre no corpo indomável, inexprimível, incontornável. Inevitável eternizar de um sentir maior que todos os sentires e que aquelas árvores testemunharam sem pudor.
Ela a ser o lugar reservado àquele jardim por onde hoje arrasta a sua existência. Sem o seu corpo a dançar. Sem dedos nas cordas. Mas a música a ser o agonizar dentro da sua cabeça. A certeza da solidão incomensurável.
Em cada passo que ousava ceder ao corpo contabilizava a possibilidade de existirem ali mais que dez mil folhas. Como se dez mil folhas pudessem ser uma imagem como a que agora fingia poder estar a ver quando os seus olhos, fechados na inesperada fluidez das lágrimas, nada viam para além da imagem dela.
Pensou na casa. Tudo arrumado. Quase.
Era a última semana do ano e fazia precisamente dois meses que ela partira. Nas asas de anjos, lhe disseram. Nas asas de anjos como se os anjos pudessem ter asas com força suficiente para a transportar no vento frio do Inverno. Dois meses. Ela iria a dançar. Certamente. E a cantar. E talvez a dizer o nome de quem o tempo que passou tornou vida na serenidade dos dias vividos no jardim, no segredo que só as árvores poderiam guardar, duas solidões feitas uma vida inteira naquele segredo. Duas músicas a serem lugar de poesia não passível de ser lida pelos transeuntes. Não. Não havia palavras possíveis. Não havia lugar a mais ninguém. Nenhum passado. A impossibilidade de haver futuro. Duas solidões a fazerem magia.
Dois meses e a caixa do violoncelo fechado para o mundo.
Dois meses e as janelas da casa a segredar o silêncio de quem não sabe o mundo.
Dois meses e a melodia incessante na sua cabeça e a incapacidade dos dedos se moverem.
Era a última semana do ano.
Eram dez mil as folhas sob os seus pés. Contou às árvores o último segredo.
Retornou a casa.
Era a última semana do ano.
Agora estava tudo arrumado.
Os anjos, de asas abertas, não tardariam a chegar. E ele em silêncio. Com a música dentro de si se deixaria levar. Porque, afinal, há a força de dez mil folhas em cada asa de cada anjo.