[skin] momento
Era de noite quando cheguei. Quase. Era uma bruma a iniciar um qualquer tipo de queda lenta sobre as mãos. Quase de noite quando entrei. A sala pareceu-me cheia pela percepção que tive do volume de vultos enegrecidos que circundavam as mesas. Redondas, penso. Muitos. Meia-luz. A sala apenas a meia-luz para dificultar a visão aos estranhos. A mim. Fiz um esforço. Maior do que eu. Para ver. Sem ver. Para avançar. Senti que todos os olhares pousavam em mim e me feriam sem piedade. Sem piedade nenhuma. Sabia-me só e estava profundamente emerso em seres estranhos cujos rostos eu não podia perceber. A visão cada vez mais dúbia. Enevoada. Sem definição. Procurava-te no centro da sala. Evitava olhar para os lados. Mordiam-me o corpo inteiro. A dor era intensamente aguda. Cada um daqueles corpos a abraçar o meu com as lâminas dirigidas aos ossos. E eu acordado a sentir tudo. Tudo. Até ao fundo. A carne a rasgar mesmo até ao fim e nem uma gota de sangue. Talvez pudesse ter caído alguma chuva mas não to posso garantir. A minha atenção centrada na demanda do teu vulto. Teu corpo. Por entre todos os que me violavam. Eu na hesitação do respirar a saber que o ar terminaria em breve e eu teria de ceder. As mesas – não redondas, não – a tornarem-se obstáculos à minha tentativa de movimento. Os passos. E eu a cegar. A cegar como se os momentos terminassem todos ali. Um lugar sem qualquer direito a um qualquer retorno. Nenhum retorno. Nenhum direito. Inspirei. O ar a tentar permanecer numa luta hercúlea com a necessidade de gritar teu nome por entre a densidade da minha cegueira. Expiro. O ar a fugir de mim com as asas de anjo caído sobre as escarpas das montanhas que te rodeavam o olhar quando me vias. Hesitava o respirar. Servi-me de um copo à esquerda dos meus dedos. Antecipei o liquido a queimar-me a alma inteira e a vontade de cair. Um vulto a levantar-se e a dirigir-se para a porta. A porta avançara muito sem que eu me tivesse apercebido. Sem saber que me movia excepto quando uma qualquer mesa feita obstáculo incontornável. E a minha carne ferida. E a querer chamar-te pelo nome e a não poder falar. A sala em silêncio como se lugar sagrado selado em voto de silêncio carmelita. Passos descalços sobre a areia do chão. Agora que o pude sentir. Meus passos descalços. O chão inesperadamente quente. E eu frio. Frio como uma manhã de inverno em que esperei que me salvasses de mim. Eu descalço e nú. A chegar. Ao frio. Frio como esta sala em que me arrasto sem ver. Como não havendo qualquer possibilidade de amanhã vir a existir em qualquer um de nós. Enquanto eu descalço a procurar-te nos limites da sala. A evitar olhar para os lados. A já não ver sequer o silêncio. A não ver nada e a sentir-me como se vazo de tudo. Talvez até de ti. Percebi que talvez não devesse procurar-te mais porque as coisas que partem não devem ser procuradas. Para não serem encontradas. É para se encontrem a si. Para se verem no reflexo da areia e saberem o lugar reservado à água. No meio do delírio. Na imensidão do deserto. Na profundidade serena da solidão perfeita. Nenhuma mão a amparar a queda. Nenhum corpo a lamber o suor. Nenhuma lâmina a provocar dor. Nenhum pedido a assolar a promessa. A solidão perfeita. Tu a solidão perfeita. Eu a solidão reencontrada na perfeição de ti. Virei as costas. Virei o corpo todo. Senti os pés rodaram na areia e decorei o movimento. Respirei. Recomecei a respirar num movimento contínuo. Ofegante. Serenamente ofegante. Um movimento seguro de quem pode cometer o gesto sem pudor. Sabia agora que poderia ver o caminho. Até à porta. A cegueira a abandonar-me na vontade de deixar vêr o caminho previsto. Partida. A beleza da partida. Eu em direcção à mesma porta por onde tinha colocado o corpo na dimensão de ti como se o desejo a mover-me. Como se a levar-me. A fazer-me ir sem temer. Porque ter temido o que deveria ter sido visto. O olhar seguro na porta. O corpo não mais dilacerado pelos vultos – agora corpos inteiros que me não olhavam, que me não feriam, porque eu não existia ali. Vi o chegar de todas as coisas. No sentido correcto. De todos os corpos. De todos os copos. E parti. Fechei a porta. Segurei-me nas mãos. Apaguei todas as últimas luzes. E dormi. Na solidão mais que perfeita.
1 Comments:
Sempre na partida, a chegada é um tormento; seres de silêncio, as palavras são punhais; vivências do direito, é no avesso que miramos o que acontece. Um texto magnífico!
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